Poderes Discricionário e Vinculativo
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Os conceitos de discricionariedade e vinculatividade têm uma dimensão histórica, eles surgem intimamente ligados as tentativas de entendimento do Princípio da Legalidade. Princípio este que desde a sua génese no Estado Liberal, séc. XIX, em que era entendido na sua dimensão formal, como sendo a subordinação da Administração Pública à Lei, a lei parlamentar que regulava unicamente a segurança de liberdade e de propriedade, até aos dias de hoje em que é entendido na sua dimensão material, exprimindo a ideia de juridicidade, isto é, a ideia de subordinação da Administração à Lei e ao Direito, vem ajudando a compreender o que são e como se estabelece a relação entre o conceito de discricionariedade e o conceito de vinculatividade.
Ao longo dos anos, desde o tempo da "infância" difícil do Direito Administrativo, foram vários os autores que se debateram acerca da distinção entre estes dois conceitos, tendo surgido as mais variadas teses, desde as construções mais tradicionalistas as construções mais modernas, das quais se destacam:
- A Construção tradicional, defendida pelo prof. Marcello Caetano, que olha para o ato administrativo e qualifica-o como vinculativo ou discricionário em função da existência ou não de liberdade do ato. Esta construção entende que o poder discricionário é um poder que esta à margem da lei, à margem do princípio da legalidade, o que implica que ele não pode ser jurisdicionalmente controlado. O ato é discricionário se for da exclusiva responsabilidade da Administração e não puder ser controlado pelo Tribunal e é vinculado se puder ser controlado pelos Tribunais;
- Ligada a esta construção tradicional surge a construção do prof. Diogo Freitas do Amaral, que entende que não se pode falar em atos discricionários ou atos vinculativos, como faz a construção tradicional, uma vez que o ato administrativo tanto pode ter aspetos de natureza discricionária como como pode ter aspetos de natureza vinculativa. Segundo esta visão a distinção entre estes dois conceitos deve atentar não ao ato, mas sim aos poderes que estão a ser exercidos. Assim teremos atos que têm poderes que correspondem ao exercício de poderes vinculados e ao exercício de poderes discricionários.
Estamos perante poderes vinculados quando o Tribunal pode controlar os aspetos vinculados do exercício, isto é, quando o ato administrativo é suscetível de controlo e apreciação jurisdicional, e perante poderes discricionários quando o ato administrativo não esta submetido ao controlo e apreciação jurisdicional, não podendo os Tribunais interferir no seu domínio. O professor Freitas do Amaral ressalva que a partida um ato pode ter tanto poder discricionário como poder vinculativo;
- A terceira construção surge nos anos 80, com a tese de doutoramento do professor Sérvulo Correia, inspirado na doutrina alemã. O professor vem dizer que para fazer-se a distinção entre a discricionariedade e a vinculatividade deve-se observar que existem duas espécies de discricionariedade. Uma que se verifica no momento da apreciação, a margem da "livre" apreciação, e outra que se verifica no momento da decisão, a margem de "livre" decisão. Isto quer dizer que no momento da apreciação a Administração goza de "liberdade" para apreciar os vários factos e situações de acordo com a circunstância, dentro dos limites legais, e no momento de decisão a administração goza de discricionariedade na medida em que existindo duas ou mais escolhas possíveis ela pode escolher a que bem entender.
Assim enquanto que a discricionariedade passa pela "liberdade" da Administração a vinculatividade passa pela subordinação da Administração à lei e ao controlo por parte dos Tribunais;
- Por último temos a construção defendida pelo prof. Vasco Pereira da Silva, segundo este, cada poder administrativo que está a ser exercido tem tanto aspetos vinculados como aspetos discricionários, sendo que estes podem manifestar-se em três momentos:
i) no momento da interpretação - que ocorre quando a Administração faz escolhas pelas quais é responsável. Escolhas estas que implicam responsabilidade, porque são limitadas pelo ordenamento jurídico;
ii) no momento de apreciação - em que a Administração aprecia as circunstâncias de facto e a valora no quadra da aplicação da lei;
iii) no momento da decisão - em que a Administração vai tomar a decisão final acerca da realidade que está em jogo, atendendo ao caso em concreto.
Apesar de existirem quatro construções relativas a distinção entre a vinculatividade e a discricionariedade, atualmente nem todas podem ser aplicadas. Seguindo os ensinamentos do professor Vasco Pereira da Silva, da primeira construção até a terceira encontramos aspetos negativos que de certa forma podem ser considerados impedimentos a aplicação destas nos dias de hoje.
Quanto a construção tradicional, atualmente não faz sentido aplicá-la pois ela padece dos vícios da "infância" traumática e difícil do Direito administrativo, marcada pelo liberalismo e pelo modo liberal de entender a separação de poderes e o principio da legalidade. Ela partia da confusão entre a vontade dos órgãos públicos e a vontade dos sujeitos privados, e entendia que a Administração era uma entidade que possuía vontade e liberdade de escolha, no entanto a Administração não tem uma vontade própria, a vontade dela é legal, é construída por lei e ela nunca pode contrariar as opções do ordenamento jurídico, logo, nunca poderá ser livre.
A segunda construção embora já permitisse fazer um controlo mais amplo da atuação da Administração e fazer a distinção entre os poderes e não os atos, ela continuava a colocar problemas do ponto de vista do Estado de Direito e do controlo integral da atuação administrativo, pois tal como a construção anterior ela continuava a caracterizar o poder discricionário como um poder livre, no entanto já sabemos que todos os aspetos do poder, sejam eles discricionários ou vinculados, são suscetíveis de controlo jurisdicional. Ainda que hoje em dia o professor Freitas do Amaral tenha mudado o seu entedimento acerca da liberdade do poder discricionário, entendendo que o poder é discricionário quando o seu exercício fique entregue ao critério do respetivo titular, que pode e deve escolher a solução a adotar em cada caso concreto ajustada à realização do interesse público protegido pela norma que o confere, ela continua a não ser a melhor construção.
Já a terceira construção, para além de colocar problemas quanto ao uso da expressão "livre", pois do exposto anteriormente resulta que a Administração não é livre, coloca também problemas quanto ao facto da construção entender que existem duas espécies de discricionariedade, quando na prática tal não parece ser o mais correto, porque os níveis de discricionariedade entre a duas margens não parecem apresentar diferenças e a escolha da Administração em ambos os momentos encontra-se limitada pelos mesmos critérios, logo não faz sentido falar-se em dois tipos distintos de discricionariedade. E também não parece correto aplicar esta construção porque ela desconsidera o momento da interpretação da norma, que deve ser a primeira ação a ser realizada antes da tomada de decisão.
Em suma, definido que estão ambos os conceito de discricionariedade e vinculatividade e apesar de existirem várias construções acerca destes, penso que a que melhor se adequa nos dias de hoje, será a quarta construção, do professor Vasco Pereira da Silva , na medida em que ela vai de encontro com o novo entendimento material, de juridicidade, do princípio da legalidade, que ao expressar a subordinação da Administração à Lei e ao Direito, vem limitar os aspetos discricionários da Administração, na medida em que fornece elementos vinculativos de ordem da competência, do fim e de vinculações autónomas, isto é, vinculações que podem constar da lei ou de princípios (administrativos ou constitucionais), sem que com isso deixe de existir a discricionariedade, pois ainda que a lei quisesse ela não consegue prever e regular todas as coisas, pois a realidade é mutável, e cabe a Administração com a sua margem discricionária preencher estes vazios. E também porque esta construção expressa o método mais eficiente que deve ser utilizado no momento de aplicação da lei, que vai desde a interpretação, a apreciação até a decisão.
Bibliografia
Silva, Vasco Pereira da, Curso de Direito Administrativo II, aulas teóricas.
Amaral, Diogo Freitas do, Cursos de Direito Administrativo, vol.II, 3.ª Edicão, Coimbra, Almedina, 2016.
Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10.ª Edição, Almedina, Coimbra,2008.
Vicência Fernandes aluna n.º26448